Palavras de Filomeno Vieira Lopes a quando do lançamento do novo livro de Domingos da Cruz


Lançamento do livro
AFRICA E DIREITOS HUMANOS
De Domingos da Cruz
União de Escritores – dia 10 de Junho de 2014

O escritor e amigo Domingos da Cruz convidou-me para participar no lançamento da sua obra. Isto aconteceu muito recentemente e o tempo era claramente insuficiente para ler um volume de 728 paginas. Quando me disse que teria mais convidados, propus-lhe então que me debruçasse apenas sobre um dos capítulos ao invés duma apreciação geral. Escolhi o capítulo 21 “O mercado Informal como estratégia de ocncretização do Direito ao Trabalho”.
Domingos da Cruz habituou-nos a ser um escritor comprometido com causas. Por seus escritos, ideias e ideiais, bem como intervenções públicas e integridade pedagógica tem tido muitos dissabores na vida, como é de esperar daqueles que ousam pensar no actual contexto. Só quem não se mexe, ou se mexe como “enguia,  passe o termo, aquática” (aqueles que se movem aos sabores das águas) não têm chatices. Várias vezes, honradamente, Domingos da Cruz, tem experimentado os bancos dos réus por teimar em ser um homem livre, defensor do direito à vida e à dignidade para todos. Como académicco, ele sabe que está sempre no banco dos réus, mas não só dessas universidades vive o nosso escritor. Por isto, não nos surpreendeu seu amor e entusiamo pelos temas de Direitos Humanos, ele próprio que, em 2009, foi galardoado com o prémio Prémio Ricardo de Mello, dessa natureza. Daí o interesse por entender Angola, no seio de África, no interior do seu continente, porque sempre que a realidade se afasta da lucidez e de padrões aparentemente consensuais procuramos entender as suas razões através de modelos comparativos. A dúvida, para ele, é algo que permanece imanente e, por isto, a trata constante e sistematicamente. Mergulhar no Continente permite ter  uma medida mais adequada para compreensãao do nosso meio indígena, mas igualmente conduz-nos a encontrar soluções esgotadas, quiça, nos horizontes internos, tal é a identidade que transborda os nossos limites.
O livro trata, como é consabido, duma colectânea de textos de diversos autores em que Domingos da Cruz também é autor ou co-autor de alguns temas. A variegada temática constituem diversos “chãos” onde os Direitos Humanos, como matéria transversal por excelência, se manifesta. A grande vantagem duma coletânea desse género é o seu valor prático. Pescamos exactamente o título que nos interessa, lemos, operacionaza-mo-lo e aprofundamos se quisermos. Mas foi ingente o esforço de seleccionar não só uma vasta gama de temas, mas igualmente uma mão cheia de significativos autores do continente e não só.
Na realidade, os direitos humanos não se esgotam nas liberdades cívicas, civis, políticas ou sociais. Nem mesmo nos deveres correlativos como Moco, no livro em análise, nos ensina como contributo da Carta Africana dos Direitos Humanos. Seu campo estende-se às questões de carácter económico: o direito que as pessoas têm de usufruir de um mínimo de sustentabilidade económica com ordenamento que evite os conflitos e promova o bem estar. O autor, nesse campo, escolheu duas temáticas de relevância popular: uma tratada no capítulo 16 sobre  “Reforma Agrária e Direitos Pré-Coloniais à posse da terra” um estudo de caso, na Namibia, e escrito por Eddie Mabo e outra que se saboreia no antepenúltimo capítulo, o 21, como atrás referi e que, repito, analisa  “O mercado informal como estratégia de concretização do direito ao trabalho”(pgs 497-515) de co-autoria de Gilberto Teixeira e Domingos da Cruz. De facto, a reinvenção popular da vida emergente desse capítulo (o do paralelo)  é uma boa preparação para terminar o livro em glória visualizando “Africa.... Os sinais de esperança” com que Domingos da Cruz, ele mesmo, conclui o livro.
O repasto, contrariamente ao tema, é-nos servido “formalmente” em três partes: uma “análise epistemológica, uma análise jurídica do direito ao trabalho e uma referência a multi, intra e transdisciplinaridade do trabalho humano”.
Descobrimos na obra que o mundo, desde os anos 70, formalizou a expressão “sector informal” ou “economia informal”  enquanto alusões ao “mercado informal” (mais comum em Angola) . Tal conceptualização emergiu dum estudo efectuado no Ghana por Keith Hart (p499). Muitas são as especulações plasmadas no livro visando definir o mercado informal, o sector ou simplesmente a economia informal. A problemática percorre todas as escolas económicas desde a estruturalista, passando pelas neoliberais e neomarxistas. Concepções legalistas ou economicistas, meramente descritivas ou analiticas inscrevem-se na problemática tratada no texto se se trata duma economia dual, duma corruptela da economia dominante ou simplesmente duma disfunção da economia capitalista dominante?
O estrato social que se insere nesse tipo de mercado permite igualmente os autores fazerem especulações e mostrarem interessantes pontos de vista. Será o “informal” uma “economia subterrânea” onde, por exemplo, ponderam traficantes de droga, lavadores de dinheiro ou antes correspondem a “actividades desempenhadas por trabalhadores pobres, mas que não são admitidas como legais, registadas, protegidas ou regulamentadass pelas autoridades”? (p498). Enquanto alguns actores incidem sua analise na pequena dimensão e nos métodos artesanais (OIT) que certa economia emprega, outros dão mais realce a natureza ilicita dos actores em causa. Há também quem como Carlos Sala, citado na p 501, que refuta o termo “informal” e propõe o estudo das “micro unidades”. Santamaria, por outro lado, é no livro referido como proponenete do termo “economia popular” ao invés de “informal”.
Os autores tentam reflectir sobre as causas que motivam o mercado informal. Encontram-nas nas análises dos várias estudiodos do tema e podemos visualizar situações que vão desde as disfunções do mercado, até a inexistência (vazio) de regras capazes de regularizar a intervenção económica dos vários agentes. Repare-se que são identificadas situações de operadores que tentaram por vias legais “obter receitas” mas que o mercado legal não permite a sua intervenção e são forçados a recorrer a outras formas de as obter como “estratégias de sobrevivência”.
As autores mostram uma leitura vasta sobre o tema, mas mesmo assim concluem não ser fácil encontrar definições e causas, pois a fronteira entre o formal e o informal está prenhe de complexidades. Mas não há dúvida que o livro oferece ao leitor a capacidade de discernir sobre a sua própria realidade encontrando importantes pistas para descobrir os grandes meandros do tema. Até porque os autores discernem sobre posssíveis soluções para o mercado informal já que o mesmo é objecto de visões “satánicas” como o causador de todos os males e, por via disto, os seus agentes são objecto de séria repressão, como ocorre em Angola.
Por isto, o tema para o nosso país é deveras pertinente e leva-nos a importantes reflexões. Como foi possível estar o país sujeito a uma economia super formalizada em que o Comércio Interno e Externo eram controlados pelo Estado, mas que desenvolveu um mercado informal de maior proporção que o próprio mercado formal? É possivel imaginar à luz das análises referidas desenvolvidas no livro, precedentes que vão desde a alimentação (drenagem)  desse mercado através das vias oficiais, como a incapacidade do Estado prover o pleno emprego e as pessoas procurarem outras vias de sobrevivência como factores que pesaram na sua implantação. Aí, pode aferir-se questões relacionados com a estruturação do sistema económico – altamente concentrado-  na base do estabelecimento dum consumo por castas politico-burocratas e militar, com produtos afectados por uma entidade externa as familia. Tal sistema favoreceu, desde logo, a acumulação dita primitiva do capital angolano, pois permitia a certos sectores poupanças desmesuradas. Funções económicas normais como a troca da moeda, o crédito, etc que eram reprimidos, por nítida ausência de política económica na época, foram assumidas pelo mercado paralelo para satisfazer as necessidades dos cidadãos. A economia de Angola em certa altura estava efectivamente dependente do paralelo, com, praticamente excepção da produção petrolífera. Na verdade, o Estado de então era marginal e as regras da economia, enquanto praxis, residiam na esfera informal.
Uma das caracteristicas do sector, mercado ou economia informal é ficar de fora do sistema de protecção que as instâncias governamentais devem cconferir ao trabalho. Se, por um lado, nao pagam impostos, por outro, desde a arbitrariedade do direito ao trabalho, a inexistência de férias, seguros, remuneração estável, direitos inerentes à saúde e à reforma, etc o chamado sector informal está completamente marginalizado. É aqui que a situação choca com a questão dos direitos humanos. Na verdade os autores nos oferecem toda a panóplia legislativa a nível mundial desde Convenções, a tratados, acordãos etc que nos orienta sobre a violação que a situação “em si” do informal comporta.
Estados autoritários actuam sob o informal não pelas suas causas e pelos aspectos da sua regulação socio-economica geral, mas por suas consequências negativas. Esquecem exactamente as estratégias de sobrevivência que, no caso de Angola, acabaram por sustentar a maioria dos angolanos, marginalizados do sistema. Ao  agir assim, criam-se situação de repressão críticas contra os pobres do sector, o que impulsiona gravíssimas violações dos ddireitos dos cidadãos. Ficam as zungueiras e outros actores duplamente castigados, uma vez que em função dos tratados que o país assinou (e mesmo pela Constituição que subscreveu) o Estado é obrigado a ter políticas visando a criação de empregos (o direito ao trabalho é inalienável)  a exequibilidade de um salário aceitavel e sem discriminação relativamente ao tipo de trabalho e género,  permitir organização em sindicatos,  organizar a vida trabalhista por forma a que cada cidadão possa perticipar na vida social, a operar em condições higiénicas, a ser protegida, no caso das zungueiras, como mulher, enfim.... há pois aqui violações desses direitos subscritos e depois, por acréscimo, a violação do seu direito de vender ou produzir, enquanto processo de sobrevivência, através do chicote, do bastão, de perseguições e correrias e, não poucas vezes, baleados em plena hasta publica, com seus filhos nas costas.
Entendendo contrariar tais violações, os autores, como referido acima, oferecem um menu de soluções. Mas estas serão, estou certo,  objecto da Vossa prestimosa leitura nas páginas 506 e 507, pois na sua base, podemos criar um movimento de opinião visando, enquanto cidadãos, ver exterpida a dupla violações de Direitos Humanos (seja através da ausencia de direitos e da represssão aos actores do mercado informal) que atingem igualmente os nossos corações e sensibilidade. Se assim procedermos estou convencido que Domingos da Cruz alcançou o objectivo que preconizou ao organizar a presente colectânea.
FVL